Em mais de 40 anos a acompanhar futebol, já vi um pouco de
tudo quando as vitórias acontecem: dedicatórias ao pai, à mãe, à mulher e aos
filhos, a uma tia da província, à boazona de mini-saia que se senta atrás do
banco de suplentes, aos adeptos em geral, a um grupo específico em particular,
à direcção, ao presidente.
Tudo normal, portanto, descontados os normais exageros
provocados pela embriaguez da vitória, qualquer que ela seja.
Acontece que os tempos que o Benfica vive, são tudo menos
normais.
O clube vive bloqueado numa espécie de depressão pós-Maio,
esse mesmo: o mês de todos os horrores.
No Benfica actual só estamos de acordo quanto a uma coisa:
de facto, ninguém se entende.
O Benfica tornou-se um clube de gente zangada e amarga,
incapaz de romper com o passado recente: todos continuamos zangados com algo,
com alguém ou até com o mundo todo.
Só à luz desta estranha forma de vida que de repente tomou
conta de nós, se percebem as insólitas reacções de uma franja da massa adepta
às palavras de Luisão após a difícil e pouco brilhante vitória no Estoril.
Que um capitão de equipa dedique algumas palavras ao
presidente, parece-me perfeitamente normal: sempre o foi e daí não veio, nunca,
mal ao mundo.
Que dedique uma vitória (que, aliás, seria completamente
insignificante, não fosse o contexto…) ao homem que mal ou bem tudo tem para
que nada falte à equipa (condições de trabalho, salários a tempo e horas,
enfim, esses pequenos pormenores…), parece-me acima de tudo um acto de
solidariedade num momento difícil.
Não o entenderam assim, alguns de nós: sinais dos tempos
que vivemos e de uma estranha lógica de confronto e crispação da qual só o
Benfica não terá nada a ganhar.
Perante tudo isto, cada vez mais me convenço que Cosme
Damião foi, de facto, um homem admirável e corajoso que se propôs a uma
tarefa hercúlea e irrepetível: hoje ninguém se entenderia sequer em relação ao
local da reunião, quanto mais para fundar um clube.
E se porventura se chegasse a um acordo, não me restam
grandes dúvidas: da Farmácia Franco não ficaria pedra sobre pedra.
RC
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